A falta de isonomia da inexplicável e tardia modulação de efeitos da decisão sobre exclusão do ICMS é flagrante
O “julgamento do século” realizado em maio foi a derradeira etapa de um longo processo em que se discutia a validade constitucional da incidência das contribuições sociais PIS e Cofins sobre parcela das receitas auferidas pelas pessoas jurídicas imputável ao valor do ICMS que, embora destacado nas notas fiscais, é embutido no preço, cobrado “por dentro”, de acordo com a técnica de tributação adotada no Brasil.
A decisão do STF expôs as vicissitudes de um sistema tributário distorcido, que onera sobremaneira o consumo e permite a incidência econômica, em cascata, de tributos sobre valores de outros tributos.
Trata-se de uma relevantíssima vitória dos contribuintes, em constante busca por um alívio fiscal pela via judicial, já que Executivo e Legislativo têm sido incapazes, nesses últimos vinte anos, de concretizar a desejada reforma tributária.
Enquanto a reforma não vem, as empresas digladiam nas arenas dos tribunais contra a voracidade da União, especialmente no domínio das contribuições sociais, buscando, na maior parte das vezes, expurgar valores das receitas, no caso do PIS e da Cofins, e das despesas com pessoal, no caso das contribuições sobre a folha.
A verdade é que com as armas do PIS e da Cofins recalibradas, pela incidência sobre todas as receitas a partir da Emenda Constitucional (EC) nº 20, de 1998, e desvinculadas, pela eterna prorrogação da DRU (atualmente até 31 de dezembro de 2023), a União Federal as fez sua mais relevante fonte de arrecadação nos últimos anos.
Com efeito, não se bastando em ser “sócia” - participando nos lucros por meio do IRPJ e da CSLL -, a União reserva para si, na “boca do caixa”, um percentual das receitas das vendas de mercadorias e serviços, além das receitas financeiras, que se deslocam para o caixa do Tesouro, a título de contribuição social.
Se é de se comemorar a vitória quanto ao mérito da discussão, é de se lamentar a demora inexplicável de quatro anos para a conclusão do julgamento dos embargos de declaração da União. A demora do STF provocou um desnecessário ambiente de insegurança jurídica, causado pela abertura de mais contenciosos administrativos e judiciais, pois a administração fiscal resolveu limitar interpretativamente a extensão do quantum a ser devolvido ao valor do PIS e Cofins incidentes sobre o ICMS recolhido e não sobre o ICMS destacado na nota.
A resposta final do STF, confirmando o que não poderia deixar de ser confirmado, isto é, que o ICMS a ser excluído da base de cálculo é o ICMS destacado na nota fiscal, deixou, porém, um sabor amargo na boca dos contribuintes, já que, rendido aos argumentos ad terrorem, o Supremo modulou os efeitos da sua decisão.
Assim, por um capricho da sorte, os contribuintes que ajuizaram ações até uma determinada data - 15 de março de 2017 - poderão ser ressarcidos da tributação indevida; já aqueles que optaram por esperar ouvir a palavra final do STF, dela não poderão se beneficiar em toda sua extensão.
A falta de isonomia da inexplicável e tardia modulação é flagrante. A inconstitucionalidade não pode valer apenas para alguns. A Constituição deve se aplicar igualmente para todos. O tributo é devido ou indevido. Escolher, com base nas áleas das pautas de julgamento, uma data de corte, beneficiando litigantes mais arrojados em detrimento dos mais conservadores, é negar a essência fundamental do princípio da igualdade, que repudia discrímens arbitrários.
Resta saber como a União Federal irá se comportar em relação aos processos ajuizados depois de 15 de março de 2017 e que transitaram em julgado antes de 13 de maio de 2021, data do julgamento dos embargos de declaração. Promoverá ação rescisória, visando anular os julgados? Poderá a modulação servir-lhe como fundamento?
Parece-nos um rematado absurdo qualquer pretensão de desconstituição da coisa julgada material formada em processos ajuizados depois da data da modulação.
A coisa julgada é imutável. Sua intangibilidade é garantida constitucionalmente. A decisão nos embargos não reapreciou o mérito da discussão da extensão da base de cálculo do PIS e da Cofins, que segue sendo rigorosamente a mesma de 13 de março de 2017. À falta de novos contornos jurídicos da discussão, que poderiam permitir a revisão de eventuais sentenças passadas em julgado, segue-se a absoluta inexistência de fundamento de mérito para autorizar a sua desconstituição.
Qualquer pretensão em sentido contrário significaria reconhecer a absoluta inutilidade das instâncias inferiores que, subservientes à Suprema Corte, deveriam paralisar seus trabalhos, esperando o tempo que fosse necessário para saber se haveria ou não modulação.
Modulação essa, aliás, que foi concebida pelo legislador como uma medida excepcional, que deveria ser mais aplicada em favor do que contra os particulares, e, lamentavelmente, tornou-se regra para favorecer o Poder Público.
Fosse o STF mais rápido na sua decisão, ainda que optasse pela modulação, não se estaria diante desse (falso) problema, que deve ser controlado na origem, evitando mais um round da interminável batalha judicial entre contribuintes e Estado por um alívio fiscal na tributação do consumo. É o que nos resta esperar, enquanto a reforma tributária não vem.
Fonte: Valor Ecônomico